quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Para ler e saborear

Mais uma vez tenho que me render a um texto do meu irmão. De extrema delicadeza, acho que merece ser lido.

O chafariz e as camorélias

o chafariz é um estado de espírito. você acorda chafariz - e nem sabe muito bem porquê. pode ter sido um sonho que você teve à noite e já nem lembra mais; pode ser talvez o clímax de algum ciclo metabólico; pode ser uma secreta conjunção de planetas que só a você é favorável... não importa. o que importa é que há dias em que você acorda chafariz do mesmo modo como o chafariz acorda, de repente, no meio da praça: exultante. jorro que sobe num jato de densa luz e se desfaz em gotas que tamborilam de volta no espelho d'água, o chafariz incessante dança a música que ele mesmo faz. de si e para si contente, o chafariz envolve a praça numa nuvem úmida de alegria - pois, se o chafariz é um estado de espírito, a alegria certamente é úmida... enfim, quando você acorda chafariz, tudo são flores. e flor é o que não falta na praça, exuberando no sol do final de fevereiro, tão luminoso e cálido.
há flores em quantidade, nos quatro quiosques da praça. e, como se já não bastasse a sutilíssima variedade de cores e perfumes que elas oferecem, há o encanto sonoro de seus nomes. sob o fundo verde das samambaias e cercados por uma corte de violetas e begônias, formam-se pares que parecem ter saltado de um conto de fadas: a gloxínia e o lisianto, o crisântemo e a prímola, o amarílis e a azaléia, o ciclame e a gérbera, o lírio e a bromélia... dançam no grande salão que é a praça ao som do chafariz orquestral, esses casais de sonho, romeu e julieta que deram certo, histórias de amor com final feliz... e aí, meu anjo, não há como não lembrar de ti. não há como não te imaginar uma gloxínia e a mim mesmo um lisianto que hoje acordou tão chafariz... e que, diante da súbita e inexplicável urgência de te cobrir de flores, descobre que não haveria hoje nenhuma que te fizesse jus - ainda mais se você viesse naquele teu vestido branco de rendas do pará.
haveria então que inventá-la. que nome teria a flor que eu te daria? camorélia. sim, eu viria com uma caixa vazia de camorélias só visíveis aos teus olhos gloxínios - que choram, líricos, só de ver uma criança pobre ou, bromélicos, se iluminam quando passa o bonde.
e te diria, "repara, meu amor, o azul do perfume delas. azul de mar e céu noturno... sente a textura abstrata destas pétalas que se confundem com a tua pele. sente.. são camorélias que inventei para ti - eternas e etéreas como soa ser o amor quando é feliz...".
e, me aproveitando do momento, pediria tua mão e convidaria a todos os viventes para o nosso crisantemo - que assim sem acento mais parece nome de sacramento. um sacramento que tem como única regra e compromisso o verso de um outro vinícius: "que seja infinito enquanto dure".
e então todos os casais felizes deste mundo viriam ter na praça para celebrar seus crisantemos - abençoados que seriam por esse deus-chafariz que não é ordem nem necessidade, mas puro acaso e improviso.
e a praça em festa se converteria numa espécie de arca de noé sem desgraça de onde partiríamos, nós, os felizes, para inundar o mundo.

do arquivo oculto que, subitamente, acordou tão chafariz...

Nenhum comentário: